LIBERDADE EM CRISTO, SENTIMENTO DE CULPA E CONVENCIMENTO DO PECADO – PARTE 1

Leandro Dorneles


Hoje, meditando, lembrei-me de há muitos (mas muitos) anos uma conhecida, ao saber da minha fé, indagou-me sobre o que Deus achava de algumas questões da vida - e que eu sabia, falava dela. Perguntou-me se certas coisas eram “certas” ou “erradas” diante de Deus.

Constantemente sou arguido com esse tipo de questionamento, sobre o que (diante de Deus ou, como dizem, “segundo a tua religião”) pode ou não pode, é certo e errado, proibido e permitido, pecado ou não pecado. Como qualquer pessoa sensata deve imaginar, não são perguntas fáceis de responder e a responsabilidade que recai sobre aquele que as responde é tamanha que, sinceramente, preferiria não respondê-las.

Na verdade, há um equívoco nestas perguntas, provocado por dogmas doutrinários que nada tem a ver com os ensinamentos de Cristo. Explico, fazendo um paralelo com a lógica jurídica:

No direito privado tudo que não é proibido por lei é permitido. No direito público, só é lícito o que é permitido em lei, observando os meios e formas por ela estabelecidos (princípio da legalidade). E na Bíblia? Seguimos os mesmos princípios?

Antes de prosseguir é necessário que o leitor entenda que, na doutrina cristã, a interpretação das Escrituras Sagradas tem como base principiológica o Novo Testamento, ou seja, a Nova Aliança de Deus com os homens através de Cristo (Lei da Graça) e não de Moisés (Lei do Mandamento). Por isso, a leitura do Antigo Testamento deve ser SEMPRE interpretada com base no Novo Testamento. Não é objetivo, porém, deste artigo discorrer sobre isso no momento.

O apóstolo Paulo elenca alguns princípios para administrarmos certas questões morais/sociais/políticas/filosóficas/espirituais em nosso dia-a-dia, não se esgotando neles tudo que o precisamos saber sobre o tema.

Uma parte diz respeito aos atos da vida cristã, outra, à forma como Deus trata tais questões. Para não tornar a leitura deveras cansativa, o presente artigo tratará apenas da primeira parte.

Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma. (1 Coríntios 6:12)

Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam. (1 Coríntios 10:23)

Sobre a liberdade da vida cristã, Paulo reforça tal princípio ao menos quatro vezes nos dois versículos supracitados: “todas as coisas me são lícitas”.

Significa que na vida cristã não resumimos os conflitos morais, sociais e espirituais como certo ou errado, pode ou não pode, pecado ou não pecado. É importante compreender que a Bíblia (lembre, sempre sob a égide do Novo Testamento) não é um livro de regras onde a pessoa que decide andar no caminho da fé em Cristo deve consultar para saber o que, de agora em diante, ela pode ou não pode fazer. E muitas pessoas desistem de conhecer a fé cristã exatamente por acreditar que, ao recebê-la receberá um manual repleto de permissões e proibições para torná-lo “santo”. Isso é totalmente antagônico aos ensinamentos de Cristo e quase me arrisco e chamar tal entendimento de heresia, senão um equívoco teológico, no mínimo. Infelizmente este é um comportamento ensinado em muitos lugares, por pessoas sem discernimento da fé cristã. Mas agora, caro leitor, você já sabe que não é bem assim.

A partir daqui é necessário paciência na leitura, que pode escandalizar alguns irmãos, a princípio, mas posso afirmar que se trata de uma reação natural, instantânea, porém, passageira, na medida em que você continuar lendo.

Significa, então, que um cristão pode fazer qualquer coisa? Sim. Pode beber? Sim. Pode fumar? Sim. Pode frequentar boates, bares e outros lugares “não cristãos” (sic)? Sim. Pode ouvir qualquer tipo de música, frequentar qualquer tipo de festa, andar com qualquer grupo de pessoas, vestir qualquer tipo de roupa, usar tatuagens, piercings, trabalhar em qualquer tipo de atividade, participar de outras religiões ou celebrações religiosas, comungar de diversas ideologias políticas e filosóficas, assistir qualquer tipo de filme ou programação televisiva, falar palavrões e fazer piadas maliciosas? Sim! Tudo é lícito!

Passado o primeiro parágrafo polêmico (ao menos para alguns), continuemos o exame dos princípios anunciados por Paulo.

O apóstolo, nos dois versículos citados traz, além da licitude dos atos da vida cristã, três outros parâmetros que devem ser conjuntamente observados. São eles: conveniência, domínio próprio e edificação (confira os versículos novamente).

1. Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm.

A conveniência está intimamente ligada à ocasião, ao testemunho, à aparência do mal e à mensagem que passamos aos que nos rodeiam.

Por questões pedagógicas, utilizarei repetitivamente o exemplo do consumo de bebidas alcoólicas para ilustrar algumas situações. O exemplo escolhido, no entanto, é meramente casual, utilizado para facilitar o entendimento. Poderia substituir por diversos outros atos/fatos que trazem dúvidas a respeito da liberdade cristã.

Sou cristão. Eu posso beber? Sim, eu posso. Não há um versículo bíblico que declare pecado o ato de beber. Deus reprova a embriaguês, por conta de todas as consequências que dela podem advir. Se o ato de beber, porém, levar a um comportamento de embriaguês, deve-se considerar se ainda assim é conveniente beber.

Vejamos alguns exemplos:

No capítulo 9 de Gênesis Noé, passado o dilúvio se embriaga, e embriagando-se fica nu diante de seus filhos, um ato de extrema vergonha para sua cultura moral familiar. Um dos filhos contempla a sua nudez ao invés de virar o rosto e cobrir o pai em sua humilhação, como o fez seus irmãos, e por isso sua descendência é amaldiçoada. Pela embriaguês de Noé todos sofreram.

No capítulo 31 de Provérbios a mãe de um rei o adverte sobre os perigos da “bebida forte” e como a embriaguês perverte o juízo e o direito. E pensando no perigo da embriaguês ela lhe ensina que não é conveniente aos reis e aos príncipes beberem, e que a embriaguês é comportamento típico dos pobres e amargurados de espírito que bebem para tentar esquecer quão miseráveis suas vidas são.

No capítulo 20 de Provérbios o escritor adverte que “O vinho é escarnecedor, a bebida forte alvoroçadora; e todo aquele que neles errar nunca será sábio” (versículo 1). Também diz que aquele que anda com os beberrões e comilões acabará na pobreza (versículos 20 e 21).

Nesta parte, concluímos que a Palavra de Deus ensina que a liberdade da vida cristã não é medida pela licitude, mas pela conveniência dos atos praticados, ou seja, a consequência de tais atos.

A primeira peneira, portanto, a ser utilizada na licitude de nossos atos é a da conveniência.

2. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma.

A segunda peneira está ligada a motivação dos atos praticados e a dependência que tais atos podem causar.

Jesus ensina que “aquele que pratica o pecado se torna escravo do pecado”. Em outras palavras, está dizendo que o pecado vicia. Da mesma forma, muitos atos que, a priori, não constituem um pecado, podem se tornar extremamente danosos quando deles se perde o controle, passando a se tornar um vício de comportamento.

Novamente, usando o exemplo da bebida, aquele que perde o domínio da bebida se tornará escravo dela. Em muitos casos, a peneira da conveniência evita esse resultado, não permitindo sequer iniciar o ato.

3. Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam.

A terceira peneira da licitude é a edificação.

A edificação diz respeito à qualidade do resultado do ato praticado e sua repercussão na vida do praticante e daqueles diretamente relacionados a ele. Num significado mais profundo, ela representa o seu amor à vida e que de bom se agrega a ela.

Trazendo novamente o exemplo da bebida, pensemos na seguinte situação (inclusive real e corriqueira):

Você não tem problemas com bebida. Você tem domínio próprio, bebe socialmente, não dirige se estiver bebendo e não se embriaga nem dá escândalos ou faz coisas das quais não faria se não estivesse bebendo. Mas você tem um(a) amigo(a), parente ou familiar que tem problemas com a bebida, que tem dependência pela bebida alcoólica, que bebendo traz problemas para si (saúde) e para outros (emprego, relacionamentos, etc.). Um dia ele decide parar de beber e começa um processo (sozinho ou acompanhado) de libertação/reabilitação. Está há duas semanas sem beber. Sente-se tentado, mas consegue evitar se colocar em situações propícias à bebida. Você, nada sabendo, o convida para almoçar em sua casa. Ao assentar-se a mesa, você coloca uma garrafa de vinho, daquele que você ouve dizer que uma taça faz bem até para o coração. Ele olha para o vinho como um homem olha para uma mulher formosa, mas maliciosa, e rapidamente desvia o olhar. Você oferece uma taça. Ele agradece, mas recusa, explicando discretamente que está parando de beber. Você quase se sente ofendido e diz que “uma taça” não fará mal algum, pelo contrário, fará bem até para a saúde. Ele, constrangido, resiste e recusa novamente. Você insiste mais uma vez e agora com o argumento de que a bebida é uma convenção social e que não beber ao menos socialmente é coisa de gente retrógrada, conservadora e antissocial. Ele percebe o seu desconforto e resolve aceitar “apenas uma taça”, que no final vira duas ou três. No caminho para casa ele passa naquele velho e conhecido bar e resolve tomar mais uma ou duas taças. No outro dia você passa de carro e visualiza seu amigo sentado à mesa de um bar, com o olhar apertado e vago, um sorriso artificial, tentando manter o equilíbrio da cabeça, e pensa: essa cara não tem jeito!

Paulo, falando sobre o mesmo problema, a liberdade do cristão, mas usando como exemplo da época o comer coisas consagradas de outras religiões ao invés da bebida, falando daquele que tendo conhecimento e domínio próprio (como o amigo que ofereceu o vinho no almoço), mas desconsidera a consciência dos mais fracos, nos escreve:

Assim, esse irmão fraco, por quem Cristo morreu, é destruído por causa do conhecimento que você tem. Quando você peca contra seus irmãos dessa maneira, ferindo a consciência fraca deles, peca contra Cristo. Portanto, se aquilo que eu como leva o meu irmão a pecar, nunca mais comerei carne, para não fazer meu irmão tropeçar. (1 Coríntios 8:11-13 - NVI)

Note que a liberdade que Paulo fala está sendo ponderada pela peneira da edificação e, de modo mais profundo, do amor e cuidado com os mais fracos.

Certamente eu poderia escrever muitas páginas ainda sobre o tema, trazendo diversos exemplos, mas o hábito da leitura extensa ainda nos é pesada e poucos os que a suportam.


A liberdade cristã, portanto, não é medida por regras permissivas ou proibitivas, como muitos pensam. Ela é medida por questões de solidariedade, respeito e amor, a si, a Deus e ao próximo. E tudo o que não provém do Amor é contra Deus, pois Ele é Amor.

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